22/08/2008

A Batalha de Praga – Diário de um lutador


Trouxe ontem o Público uma reportagem escrita pelo seu Director, José Manuel Fernandes, sobre uma visita que tinha feito dois anos antes a Praga, na companhia de Cândida Ventura (o artigo pode ser consultado no site do jornal, mas é impossível fazer um link). Aquela tinha sido militante do PCP, chegou a pertencer ao seu Comité Central e estava em Praga na altura da invasão da Checoslováquia, em 1968, pelas tropas de alguns países do Pacto de Varsóvia, capitaneadas pela União Soviética. Afastou-se daquele Partido em 1976, quando regressou a Portugal, tendo publicado, em 1984, um livro, O "socialismo" que eu vivi (O Jornal), muito justificativo das posições que então tomou em relação aos seus camaradas que então protestaram contra a invasão e por isso foram expulsos na altura do PCP. Há já bastantes anos li partes do livro, que me pareceu bastante desigual, mas não é isso que me interessa realçar agora.
Esta reportagem de José Manuel Fernandes e as suas referências às opiniões de Cândida Ventura, visam por um lado justificá-la aos olhos da História, depois do que é insinuado no livro de Flausino Torres, já referido no post anterior, e por outro inserem-se na campanha do Público, e do seu Director, com vista a combater quaisquer veleidades do ideal comunista poder renascer, mesmo que expurgado do seu passado estalinista. Um dos realces do artigo é esta frase de um livro recentemente publicado sobre o Pós-Guerra, em que é afirmado “a ilusão de que o comunismo era reformável, que o estalinismo fora um passo em falso, um erro que ainda podia ser corrigido (…), foi esmagada pelos tanques a 21 de Agosto (data da invasão) e nunca se recompôs”.
Debrucemo-nos agora sobre o recentemente publicado Diário da batalha de Praga, socialismo e humanismo (Edições Afrontamento, 2008), livro póstumo de Flausino Torres (1906-1974), historiador, militante comunista e antifascista. Aquele Diário é um manuscrito inédito, escrito durante a invasão da Checoslováquia e que foi dado agora à estampa devido ao meritório trabalho do seu neto Paulo Torres Bento, que já tinha escrito uma biografia bem interessante denominada Flausino Torres, documentos e fragmentos biográficos de um intelectual antifascista (Edições Afrontamento, 2006).
Antes do falar do livro gostaria de fazer uma referência pessoal ao meu conhecimento do autor, como ouvinte numa conferência que o mesmo pronunciou na Cooperativa dos Trabalhadores de Portugal. Esta conferência, referenciada no ano de 1962 na biografia do autor publicada no seu livro, teve provavelmente lugar durante o Inverno daquele ano, pois lembro-me – tinha eu 18 anos – ter sido feita referência às cheias do rio Douro, que periodicamente afligiam a zona ribeirinha do Porto, com grandes prejuízos de bens e vidas e que acarretavam sempre as lamúrias piegas dos responsáveis governamentais, que falavam da desgraça que se abatia sobre as populações. Flausino Torres nessa conferência desmascara a pieguice dos responsáveis políticos, afirmando que era possível domar o rio Douro de modo a evitar-se estas catástrofes anuais. Foi de facto o que depois veio a acontecer com o conjunto de barragens que foram construídas naquele rio.
Também, por aquela altura lembro-me de em conjunto com alguns jovens interessados em intervir politicamente termos organizado umas palestras, em que naquela que me coube em sorte me servi abundantemente do livro de Flausino Torres sobre as Sociedades Primitivas (1946), onde, que eu me recorde, se fazia uma comparação entre a aprendizagem nas sociedades humanas e nas animais. O autor fazia referência a estudos que indicavam que mesmo entre as abelhas havia alguma aprendizagem, apesar de muito reduzida. Esta minha referência às abelhas mereceu durante muitos anos algum gozo por parte dos meus amigos.
Gostaria também de alertar para um dado que muito me impressionou no livro biográfico que o seu neto publicou. Aos 60, Flausino Torres, depois de uma vida de luta antifascista e de militância no PCP, vê-se obrigado a fugir para não ser preso mais uma vez pela PIDE. Vai para Paris e depois para a Argel, onde cai no saco de gatos que era a pequena comunidade emigrada portuguesa. Não se adaptando ao que lá se passava, pede para ser transferido para outro sítio, indo então para Praga onde assiste à já referida invasão. O que espanta é como aos 60 anos alguém com uma vida organizada, professor do liceu, vivendo na província, com mulher e filhos, vai recomeçar a sua vida longe da sua terra, num ambiente desconhecido, onde como é previsível era difícil adaptar-se ao universo claustrofóbico do exílio. É de lutador.
Quanto ao Diário, poderemos dizer que é um documento pungente, que o autor tentou publicar em Portugal, quando ainda era vivo, mas que nunca foi possível. Fernando Rosas, prefaciador do livro, glosa sobre este tema, atribuindo culpas à influência do PCP. Para fugir à censura fascista, este diário é apresentado como se fosse escrito por um checo e as referências aos outros exilados portugueses e às posições do seu próprio Partido são cifradas. Com a ajuda do neto e conhecendo algumas referentes já relatados na sua biografia percebe-se a quem é que ele se quer referir.
Comecemos pela Cândida Ventura, que o autor identifica como uma Responsável e que depois o seu neto, em nota de rodapé, traça o perfil, muito pouco abonatório para alguém que posteriormente declara que já em 1968 estava contra a opinião do PCP de apoio à invasão. A própria Cândida Ventura no seu livro-justificação “lamenta que já não seja possível falar com Flausino Torres, sobre estas questões”. Dai que eu considere que a reportagem do Público, ressuscitando o livro e a autora, mais não visa do justificar para a História o seu comportamento passado.
Outro aspecto interessante é a raiva com que Flausino Torres reage às decisões do Direcção do PCP de apoio à invasão e à posição de Álvaro Cunhal, que é tratado, na tal linguagem figurada, como estrangeiro, caixeiro-viajante ou alto funcionário e com quem chega a ter uma reunião agitadíssima em Praga, que leva ao seu posterior afastamento.
No seu Diário, Flausino Torres, mantém sempre uma esperança num socialismo renovado, expurgado da prepotência dos soviéticos e dos seus satélites. Apresenta-se sempre como defensor da nova experiência iniciada pelo PC Checoslovaco e as medidas liberalizadoras por este tomadas. Nunca dá armas aos adversários, considerando que é a própria invasão que favorece o campo capitalista.
Em pequenos apartes critica a posição do PC Francês relativa ao Maio de 68 por ter saído derrotado nas eleições a seguir àquele agitado mês e ter arrastado a classe operária para uma situação sem saída. Faz também apreciações negativas sobre Fidel de Castro e a situação em Cuba, provavelmente motivadas pela posição que aquele tomou em relação à invasão, já por mim referidas em post anterior.
Como comentário final direi que é um testemunho presencial, que não pretende ser mais do que isso, mas que nos leva a pensar como as posições na altura assumidas pelo PCP já levavam este a um beco sem saída, mas em que aqueles que se demarcaram, como o PC Italiano, o Francês e o Espanhol, não tiveram melhor sorte.
Por último, referir o Prefácio, de Fernando Rosas, em que este refere o corte geracional que Praga e o Maio de 68 representaram para um conjunto de jovens a que ele pertencia, que por essa época romperam “com o campo político e ideológico polarizado pelo PCP”. É bom ter presente que para esses jovens a experiência da Checoslováquia era o exemplo acabado do revisionismo contemporâneo e que o seu modelo, a China maoista, acabou no mais desapiedado capitalismo, que verdade seja dita eles hoje denunciam igualmente. Portanto, não erijamos mitos que a história acabou por revelar falaciosos.

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