09/10/2008

A transição para quê? Do capitalismo para o socialismo?


Até ao momento ainda não tinha falado da “crise” financeira que atravessa o mundo e que cada vez mais se irá repercutir no desenvolvimento económico das nossas sociedades. Não sou economista, entendo que muitos destes temas obrigam a uma específica formação na área, e por isso meti a viola no saco. No entanto, em todo esta crise há uma forte componente ideológica, tanto na terminologia empregue como nos conceitos que todos os dias são utilizados nos media dominantes.
Vítor Dias no seu blog fala mesmo em vitória semântica , quando diariamente assistimos à substituição do termo anteriormente utilizado “economia de mercado” por capitalismo.
Por isso, é fácil encontrarmos locutores que, com a maior das canduras, são capazes de afirmar “regressa Marx, que estás perdoado” ou outras “barbaridades” semelhantes, que ainda há uns tempos seriam consideradas perigosas afirmações radicais. Já se sabe há sempre um comentarista económico que a seguir acha que aquilo a que estamos a assistir não é o fim do capitalismo, mas a sua reestruturação.
E chegados aqui estamos os dois de acordo, o comentarista e eu, a crise que atravessamos é de facto uma crise do capitalismo, que depois de muitos rearranjos dará lugar a uma nova realidade, que mesmo assim continuará a ser capitalista. Mesmo que os analistas (ver, entre muitas possíveis, esta) interpretem a situação económica que estamos a atravessar à luz do marxismo, e por mais correctas que essas análises sejam, o capitalismo não soçobrará, mesmo depois de afirmarmos que ele está em crise e que é responsável por uma enorme regressão no nosso desenvolvimento económico. É necessário dar-lhe o piparote e que haja classes e forças políticas capazes de empreender essa acção. Em última instância só a decisão política, apoiada numa força social hegemónica, permitirá a transformação da realidade económica, tomando sempre em conta o contexto e as circunstâncias da crise do sistema capitalista.
No fundo, o que queremos afirmar é que o capitalismo não cai só por si, nem depende da decisão de apressados locutores da televisão ou de alguns comentaristas mais alvoraçados, são necessárias forças políticas e classes sociais interessadas na sua substituição, neste caso por uma sociedade mais justa a que chamamos socialismo.
Dito isto e porque se insere neste tema, e já que estamos a relembrar os 40 anos da invasão da Checoslováquia por forças militares de alguns países do Pacto de Varsóvia sob a batuta da União Soviética, gostaria de chamar à colação um texto meu que neste momento se encontra arquivado aqui (Setembro de 2004), à falta de um arquivo próprio no meu blog.
O título do artigo é este A Checoslováquia, a transição para o socialismo e alguma arqueologia bibliófila, nele fazia referência a um livro publicado em meados dos anos 70, chamado Transição para o Socialismo (Edições 70, 1978) de Charles Bettelheim e Paul Sweezy, onde se reproduzia uma polémica travada entre aqueles dois autores marxistas, na sequência de um artigo que Sweezy tinha publicado na revista que então dirigia, a Monthly Review, e que ainda hoje é editada em Nova York. O artigo chamava-se Checoslováquia, Capitalismo e Socialismo, era de 1968, e vinha na sequência da invasão daquele país pelas tropas do Pacto de Varsóvia.
Qual era a tese central de Sweezy no seu artigo sobre a invasão da Checoslováquia? A invasão “não procurava travar o curso para o capitalismo. Este curso prossegue em ambos os países (Checoslováquia e União Soviética - JNF) e prosseguirá ainda enquanto não se produzir um fenómeno bem mais radical do que um programa de reforma liberal do tipo que tinha sido posto em prática na Checoslováquia durante os últimos oito meses. Os chefes da União Soviética temiam – com razão – duas ameaças: uma, em relação aos seus interesses pessoais; a outra, em relação aos interesses da camada dirigente nacional que eles representam.”
Bettelheim na sua crítica ao artigo de Sweezy tenta demonstrar que este autor não tem razão no modo como formula as suas observações às medidas de liberalização económica tomadas na Checoslováquia. Afirma que Sweezy faz uma análise superficial, realçando unicamente as contradições do conceito de “socialismo de mercado”, que nessa altura Ota Sik estava a desenvolver naquele país, ou pondo “a tónica, de modo unilateral, na existência de formas mercantis na sociedade socialista”. Pelo contrário, Bettelheim afirma que aquilo que “caracteriza o socialismo, por oposição ao capitalismo, não é a existência ou inexistência de relações mercantis, da moeda e dos preços, mas sim a existência de dominação do proletariado”. E continua “a ideia de uma "abolição directa" e "imediata" das relações mercantis é tão utópica e perigosa como a ideia de uma "abolição imediata" do Estado e é da mesma natureza: abstrai as características específicas (isto é, as contradições específicas) desse período de transição que é o período de edificação do socialismo.” Acrescentando, “estas formulações (as de Sweezy e de outros – JNF) iludem o problema essencial do socialismo – o problema do poder –, cuja defesa... pode mesmo exigir, em certas condições, recuos na frente económica (por exemplo, a N.E.P.). Se tomássemos as suas formas à letra, Lenine, ao pronunciar-se pela N.E.P., ou seja, ao "reforçar o mercado", teria agido "em proveito do capitalismo”.
A resposta de Sweezy à referência feita por Bettelheim à N.E.P. é a seguinte, existe “a possibilidade de movimentos temporários e reversíveis num sentido ou noutro. Lenine pensava justamente que a N.E.P. constituía um movimento deste tipo. Mas o crescente apoio ao mercado a que actualmente assistimos na União Soviética e na Europa de Leste é qualquer coisa de profundamente diferente (estávamos nos finais dos anos 60 e não na época da Perestroika - JNF). O fenómeno em questão não é considerado como um recuo temporário mas, antes, como um progresso socialista que beneficia de uma aprovação e de uma legitimação ideológica”.
Para Bettelleim, como se viu anteriormente, o período de transição seria o período da construção do socialismo e é um período contraditório. Este autor publicou mesmo um livro, em 1968, cuja tradução do título em francês é A transição para a economia socialista, onde no Prefácio afirma que “transição para o socialismo” é uma expressão que “está longe de ser adequada à realidade que pretende designar. Com efeito ela evoca um "movimento em frente" cujo objectivo, por assim dizer assegurado, seria o socialismo. Ora, o que, de facto, assim se designa é um período histórico que mais justamente se pode qualificar como o "da transição do capitalismo para o socialismo". Tal período não conduz de forma linear ao socialismo; pode levar lá mas pode também levar a formas renovadas de capitalismo, particularmente ao capitalismo de Estado”. Sweezy na sua réplica, em que cita este prefácio, concorda com ele, e relembra um seu artigo, de 1964, sobre a Jugoslávia, onde chega “à conclusão que o período de transição é uma via de dois sentidos”. E diz mais na sua réplica a Bettelheim: “na minha concepção, considero que as relações de mercado (que implicam, evidentemente, a moeda e os preços) são inevitáveis em regime socialista, e isto durante um longo período, mas constituem um perigo permanente para o sistema; e, a menos que sejam estritamente limitadas e controladas, conduzirão à degenerescência e à regressão.”
É evidente que esta polémica entre Sweezy e Bettelheim foi muito mais rica do que este pequeno resumo deixa antever e reflectia, para lá da caracterização mais ou menos correcta das sociedades de Leste, alguns pontos de vista maoistas, muito em voga na altura junto da intelectualidade progressista do ocidente.
A sua inclusão neste texto, que alguns pensarão despropositada, tem simplesmente a ver com a ideia que percorre as teses de Sweezy que bastava a introdução de mecanismo económicos que não eram tipicamente socialista para que a transição para o socialismo fosse posta em causa, como agora alguns apressados comentadores, consideram que a introdução de mecanismo mais eficazes de regulação ou aquilo que eles chamam as nacionalizações da banca são já o prenúncio do fim do capitalismo e o aparecimento de uma nova sociedade. Bettelheim, e bem, responde que a transição para o socialismo é uma questão do poder, que ele identifica ingenuamente com a dominação do proletariado, e que hoje em face da complexidade das sociedades modernas tem que ser encarada como o predomínio de um bloco social hegemónico. Por isso, o fim do capitalismo só pode ser encarado quando houver condições políticas, culturais e ideológicas para a sua substituição.
Por último, recordar que esta polémica nos conduz a alguns aspectos que hoje andam muito arredados na discussão sobre o que foi a invasão da Checoslováquia, permitindo que sob a capa da sua condenação, e da defesa em abstracto da liberdade e da democracia, se não faça uma interpretação mais rigorosa sobre as suas causas e qual o sentido da sua “Primavera”.
Por outro lado, demonstrar como os intérpretes oficiais do PCP, que continuam a defender a invasão, que nunca condenaram, vão introduzindo sub-repticiamente no seu discurso, sem a profundidade dos dois autores citados, a viragem que foi empreendida para o capitalismo pelos dirigentes da URSS que sucederam a Estaline.
Apesar do emaranhado de questões levantadas penso que para vós, leitores avisados, os assuntos aqui abordados são relevantes e poderão levar-vos a pensar em alguns dos temas que estão hoje na ordem do dia.

PS.: existe uma versão electrónica em português da Monthly Review já assinalada neste blog.

1 comentário:

flaviana disse...

adorei seu blog ...principalmente pq tirei uma duvidas sobre a transiçao do socialismo.