17/01/2009

Cautela com os amores, nem Alá sabe onde é que acabam?


Não me irei debruçar sobre estas declarações extremamente infelizes do Cardeal Patriarca de Lisboa. Há quem admita que o senhor estaria com uns copitos a mais e que, por esse motivo, a tradicional vigilância opinativa que a Igreja impõe aos seus ministros foi abandonada por momentos. No entanto, elas podem ser entendidas como uma crítica ao multiculturalismo defendido no “Ocidente” por certa esquerda ou por aqueles que advogam o politicamente correcto. Hoje a direita e alguma esquerda são contra a permissividade em relação a outras civilizações, culturas e comportamentos que afrontam claramente os valores ditos ocidentais. É evidente que, na maioria dos casos, aquilo que se critica refere-se normalmente aos praticantes da religião muçulmana.
É sobre isto que gostava de fazer alguns comentários.
Primeiro, manifestei-me na altura própria em artigo na net, que hoje já não sei a onde é que anda para poder linkar, contra as posições de alguma esquerda que achava que se deviam censurar as gravuras sobre Maomé publicadas num jornal dinamarquês de extrema-direita. Pensava eu, que não se devia proibir a publicação daquelas gravuras, ao contrário da posição na altura igualmente assumida pela Igreja Católica, pois estaríamos a abrir a porta para que qualquer crítica à religião pudesse ser censurada em nome da ofensa aos seus praticantes. Nesse artigo enumerava os atentados à liberdade desencadeados em Portugal, já depois do 25 de Abril, em nome dos valores ditos religiosos. Recordava um episódio antigo (1979) de uma bomba que rebentou junto ao cinema que estava a exibir As Horas de Maria, do António de Macedo.
Segundo, penso que se deve criticar todos os atentados aos direitos das mulheres praticados em países muçulmanos, bem como a permissão em alguns daqueles países da justiça ser regida pela lei corânica. Mas esta crítica não deve ser desenquadrada das implicações políticas e sociais que estes comportamentos acarretam às populações que são vítimas destas tradições. Sabemos que muitas vezes atrás destes princípios religiosos vem a defesa do conservadorismo social e político, a manutenção das classes dominantes no poder e a preservação de estruturas sociais arcaicas. Por isso, quando hoje se assiste à crítica das acções de grupos ditos extremistas, muitas vezes recorrendo a estes estereótipos, deixa-se ficar no esquecimento países ditos “amigos do Ocidente”, cujo exemplo mais flagrante é Arábia Saudita, cuja classe dominante pratica até ao horror aquele tipo de comportamentos sobre as suas populações.
Terceiro, manifesto-me igualmente contra a crítica a certos movimentos islamitas baseada em valores civilizacionais, que permitem absolver Israel, garantido que os seus comportamentos seriam iguais aos nossos – esquecendo-se que Israel é um Estado confessional – e condenar, por exemplo, os palestinianos, hoje influenciados pelo Hamas. A defesa desta posição não visa mais, em última instância, do que permitir o domínio destes povos por hierarquias corruptas ao serviço dos interesses do imperialismo “ocidental”.
Quarto, foi o “Ocidente” que contribuiu para eliminar certas direcções políticas que defendiam a modernidade nestas sociedades, ao combater por todos os meios os movimentos laicistas, que de um modo geral representavam uma ideologia progressista e anti-imperialista, apoiando, na maioria dos casos, os movimentos islamitas que defendiam um regresso aos valores corânicos tradicionais.
Enumerarei, um pouco ao correr da pena, todos os casos de que me lembro.
O golpe apoiado pela CIA, em Agosto de 1953, contra Mohammed Mosadeq, no Irão, que tinha nacionalizado a Anglo-American Oil Company e que seguia um programa nacionalista e anti-imperialista naquele país.
A inclusão da Síria como um dos inimigos do Ocidente, mas que é governada desde 1963, com mão de ferro, por um partido laico e que se clama como socialista, o partido Baas, cujo nome oficial é Partido Baas Árabe Socialista. Este partido também dominava o Iraque, de Saddam Hussein, outro dos poucos países laicos da região, é certo que regido por uma ditadura sangrenta, mas que foi apoiada pelo Ocidente quando atacou a República Islâmica do Irão.
A luta contra o regime de Nasser, no Egipto, que nacionalizou o Canal de Suez (Julho de 1956), quer explicitamente, atacando-o directamente, como fizeram ingleses e franceses em Outubro de 1956, na sequência da nacionalização do Canal, ou apoiando os Irmãos Muçulmanos, grupo de inspiração religiosa, que foi um instrumento da monarquia saudita para combater Nasser e os nacionalistas árabes. Hoje o Egipto é governado por uma oligarquia corrupta apoiada por Israel e pelos Estados Unidos.
O caso mais conhecido é a luta empreendida pelos mujahidin contra o Afeganistão socialista, dominado pelas tropas do Exército Soviético, apoiados às claras pelos americanos. É interessante ter ouvido há tempos um depoimento do jornalista da RTP, Barata-Feyo, que andou por aquelas paragens, e afirmou que a única altura em que as mulheres afegãs se puderam libertar da burka, frequentar a escola pública e exercer a sua profissão foi quando os comunistas estavam instalados em Kabul. Barata-Feyo não se pode considerar com apoiante de qualquer movimento ou país comunista.
Por último, o caso mais recente do Hamas, na Palestina, que foi apoiado por Israel para combater a Fatah, um movimento laico, que no entanto, dadas suas recentes cumplicidades com aquele país e a grande corrupção dos seus dirigentes se deixou ultrapassar no apoio popular por aquele movimento religioso.

No fundo, resumindo e concluindo, o "Ocidente", ou melhor o imperialismo, primeiro franco e anglo-saxónico e depois americano, e o seu testa de ferro que é Israel, têm vindo a contribuir para a vitória das forças islamitas, derrotando ou corrompendo qualquer saída laica e progressista, que neste contexto teria que ser nacionalista e anti-imperialista.
È pois nesta conjectura que a luta de uns contra o multiculturalismo e a oposição bacoca de outros, que consiste na justificação de algumas das mais aberrantes práticas religiosas muçulmanas, devem ser criticadas, defendendo uma saída laica, progressista e anti-imperialista para os povos e países que seguem aquela religião.

Vem a propósito, citar um belo documentário de Diana Andringa e Flora Gomes sobre a guerra colonial na Guiné, As duas faces da Guerra, onde no episódio final exibido pela RTP, se destaca, com provas concretas no terreno, esta frase sempre repetida de Amílcar Cabral, “não fazemos a guerra contra o povo português, mas sim contra o colonialismo”. Hoje quando a reacção e os sionistas tentam confundir a esquerda, que ao atacar o imperialismo americano e o expansionismo sionista, nos tentam opor o rótulo de anti-americanos e anti-semitas, temos que lhes devolver as belas palavras de Amílcar Cabral afirmando que a nossa luta não é contra o povo americano nem contra os judeus. Mas temos igualmente que fugir, mesmo que achemos justificada alguma diarreia anti-semita, da defesa das práticas e dos actos que vão nessa direcção.

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