21/10/2009

Em defesa de Saramago


Tomei posição pública sobre as caricaturas de Maomé num texto que intitulei As Caricaturas Dinamarquesas e o Embaraço da Esquerda. Aí defendi a liberdade de expressão contra todos aqueles que na esquerda a atacavam e defendi-a nestes moldes: “A publicação das caricaturas constituiu, provavelmente, uma provocação deliberada da direita. Há ideólogos dessa área política que estavam mortinhos que isto acontecesse, para justificar as agressões passadas e futuras aos países islâmicos, mas que a denúncia deste facto não nos leve, em nome do respeito ou do "respeitinho" aos valores religiosos dos "outros", a permitir que a censura se instale entre nós e nos impeça de exercer a nossa liberdade de crítica e de "blasfémia" aos "nossos" símbolos religiosos.No fundo, o que devemos denunciar são as posições de direita e extrema-direita sobre o mundo muçulmano, quer elas se traduzam por caricaturas de Maomé ou em artigos de imprensa, e não limitar a liberdade de podermos "blasfemar" contra símbolos religiosos, sejam eles quais forem.”
Por isso estou bem à vontade para, em nome dos mesmos valores, achar que José Saramago tem toda a liberdade para blasfemar contra uma religião que acha iníqua.

O que José Saramago disse foi aquilo que já há muito se tem escrito a propósito do Velho Testamento, não nas mesmas palavras, mas descrevendo os horrores que para glória de Deus os seus apaniguados praticaram. É de facto um “manual de maus costumes” e “um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana” e mais, o Deus do Velho Testamento é um Deus “cruel, invejoso” e sempre sedento de provas de devoção. Tudo isto faz parte da literatura do Ocidente e da sua liberdade em se pronunciar sobre os temas da sua Religião. Foi esta a nossa conquista, desde os Enciclopedistas até ao Estado laico que instalámos.

Por isso se percebe mal todo este alvoroço em torno das declarações de José Saramago, principalmente da esquerda, que em muitos casos lhe tem alguma raiva. Uns por ser comunista, outros por não o ser suficiente, – o episódio de apoio a António Costa ainda está na memória de alguns –, outros ainda por serem bem-pensantes ou os Pachecos da esquerda. Não quero citar exemplos para não magoar ninguém. Só agora, quando o velho reaccionarismo veio ao de cima pela voz de Mário David, o tal eurodeputado desconhecido do PSD, que propunha que desnacionalizássemos José Saramago, relembrando um secretário de estado de Cavaco, que não enviou a sua obra O evangelho segundo Jesus Cristo para um concurso literário europeu, por pura censura, é que alguma esquerda manifesta indignação.
Hoje, para espanto de muitos, Sousa Lara, o tal secretário de estado, reaparece na RTP a justificar a sua anterior atitude, dizendo que "Jesus Cristo é Deus, não é para brincar". Esquece-se da separação do Estado da Igreja e recupera os tribunais do Santo Ofício que mandavam queimar, neste caso impedindo que José Saramago de receber um prémio, em nome da interdição de se poder brincar com Jesus Cristo. O mais espantoso é como termina a notícia neste Telejornal: “da sua veia literária continua a jorrar-lhe uma espécie de sangue de Anti-Cristo”. O disparate é livre, mas quem redigiu a notícia devia ser mais comedido nas palavras. A RTP ainda é pública.

Ouvi também na televisão as reacções das Igrejas. Joshua Ruah, da Comunidade Judaica, dizia com grande elegância, que vozes de burro não chegam ao céu. O porta-voz da Conferência Episcopal, Manuel Marujão, faz declarações dizendo que a ignorância de Saramago só mostra o seu atrevimento e a sua falta de humildade, com um discurso anti-Nobel e de acento jacobino (aqui a funcionar como insulto). Estes dois comentários levam a locutora da RTP, sem que ninguém o dissesse expressamente, a afirmar que para judeus e católicos José Saramago é pouco digno de um Nobel.

A fogueira inquisitorial está lançada. A Igreja não pode ouvir crítica aos seus textos sagrados. Tem os ouvidos demasiado sensíveis e o problema é que não lê o livro agora lançado e fala em golpe publicitário (Conferência Episcopal Portuguesa). É sempre o mesmo, quando se quer destruir alguém diz-se que ele actua por dinheiro, neste caso para vender mais livros. É velha táctica do assassínio por carácter. Não se discutem ideias discute-se as intenções malévolas do adversário.
Ao mesmo tempo reaparece o coro da reaccionarice que, apesar do disfarce, se manifesta nos políticos de direita.
A nossa Igreja Católica ainda não entrou na Idade Moderna.
PS.: não resisto a citar um post de esquerda, que pela sua pedanteria, representa aquilo que eu mais abomino que é alguém a dar-se ares. No fundo, bastava dizer que Saramago apoiou António Costa para a Câmara de Lisboa. O pedante em questão é Carlos Vidal, um intratável escrivinhador do 5 Dias. O que vale que não é só ele que lá escreve.

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